
Há mais ou menos um mês, fui ao velório de um amigo da família e, entre aqueles papos típicos de velório e alguns reencontros com pessoas que não via há um bom tempo, minha ex-sogra disse, em tom elogioso: “Você está mais magro, que bom”.
De fato, perdi alguns quilos de um ano para cá. Aliás, foi um ano relativamente bom nesse sentido, porque pela primeira vez na vida consegui não só cumprir um plano anual de academia como me senti animado para renová-lo.
Mas o caminho ainda é longo e complexo. Na semana passada eu fui na nutricionista, na nutróloga e na psicóloga, tudo na mesma tarde, uma em sequência da outra, na enésima tentativa de emagrecer. Desta vez, como parte de um projeto de medicina preventiva do meu plano de saúde que reúne um grupo de suporte com possível indicação de cirurgia bariátrica.
Não sei se vou fazer a cirurgia, nem é tempo de tomar qualquer decisão: segundo uma das profissionais, o programa dura dois anos e eu preciso perder 10% do meu peso atual para poder realizar a bariátrica a fim de correr menos riscos. Na balança, 151,5 kg. Nem é meu auge: quando comecei na atual academia, estava com 156.
Quase 30 anos nos três dígitos
Passei dos 100 quilos em 1995, aos 17 anos, no último ano do colegial, aquilo que hoje chamam de ensino médio. Fazia o curso técnico em Processamento de Dados na ETE (hoje Etec) Fernando Prestes pela manhã e estágio na prefeitura à tarde, na Secretaria da Educação. Saía da escola às 12h30 com aquela fome de adolescente e pegava dois ônibus com alguns colegas até o Paço, que, como todos aqui em Sorocaba sabem, fica meio que na saída da cidade (ou na chegada, depende do ponto de vista). E íamos direto ao refeitório dos servidores para almoçar.
O refeitório tinha aquela comida de refeitório, saborosa mas à base de muito tempero industrial. Com arroz, feijão, macarronada e salada à vontade, além de duas opções de mistura à escolha: geralmente entre três cubos de carne de panela, dois bifes médios de coxão mole, dois filés de frango à milanesa, eventualmente peixe, às vezes omelete, raramente lasanha de berinjela.
(“Mistura” é como a gente chama aqui em SP, ou pelo menos no interior, a carne ou as opções a ela, supostamente a parte nobre da refeição. Nunca entendi de onde veio, mas todo mundo que eu conheço sempre chamou assim.)
E tinha refrigerante à vontade, numa máquina ali instalada por uma tradicional fabricante da cidade (pensando bem hoje, não lembro se era à vontade ou se a gente repetia na cara de pau, mas ninguém nunca reclamou). O refrigerante de cola era horrendo como todos os refrigerantes de cola que não são o mais famoso. O de laranja tinha gosto de sabonete e o de limão, de Pinho Sol. Mas o guaraná era palatável e a tubaína, grande estrela da companhia, era mesmo gostosa.
Foram apenas seis meses de estágio, o suficiente para o rapaz que tinha parado de crescer aos 16 começasse a engordar de novo até chegar aos três dígitos.
Para nunca mais voltar.
O milagre que não foi
A mais traumática das várias tentativas de emagrecer ao longo desses quase 30 anos foi em outubro de 2014. Médico particular, conhecido por suas fórmulas mágicas que “funcionavam”. Lembro da data porque já lecionava na faculdade de comunicação e estávamos no período entre os dois turnos da eleição presidencial Dilma x Aécio - e claro que o doutor feiticeiro milagreiro soltou toda sorte de clichês preconceituosos e discriminatórios contra nordestinos e eleitores de esquerda em geral. Na balança, já estava com 135 kg. Nas mãos, na saída da clínica, a recomendação da dieta Atkins e uma receita que tinha, basicamente:
Bupropiona de manhã;
Fluoxetina com ranitidina após o almoço;
Topiramato após o jantar;
Cápsulas de mucuna com faseolamina, duas vezes ao dia (devia ser o toque natureba).
Funcionou que foi uma beleza, assim como a dieta, que não descumpri ao longo de pouco mais de dois meses. Só carne, fruta e salada. Chegava em casa à noite e parecia hipnotizado: olhava para doces sem sentir nenhuma vontade. Recusei convites para ir a pizzarias e só deixei a dieta de lado em 20 de dezembro, dia da festa dos professores na faculdade, com amigo secreto e lanche comunitário - obviamente repleto de inevitáveis carboidratos. Coincidiu com o fim do primeiro ciclo de medicação, que durou dois meses.
A essa altura, já tinha recebido incontáveis elogios pela “força de vontade” - turbinada pelas anfetaminas que tomava em casa, ou seja, ninguém via ali, embora tivesse comentado por alguns amigos mais próximos. Emendei essa “fuga” com as festas de fim de ano, e aí não marquei outra sessão com o milagreiro, não fiz a nova leva de remédios milagrosos e os pouco mais de 20 quilos perdidos foram reencontrados ao longo dos meses seguintes, com havia acontecido em ocasiões anteriores.
Efeito sanfona que chama, né?
Depois disso, vieram incontáveis horas de academia, novas visitas a endócrinos e tentativas de dieta, uma pandemia que causou uma ansiedade absurda convertida em comida e, enfim, chegamos a hoje.
Os impactos
Minha primeira crise de hipertensão veio em 2006, com uma dor de cabeça horrorosa durante uma tarde de trabalho no Estadão que me rendeu uma visita ao ambulatório, uma medição em 19x13 e uma receita de Captopril. De lá para cá, anos e anos controlando a pressão à base de diferentes remédios, sempre com aquele alerta: “Se emagrecer, melhora”.
A glicemia começou a subir só depois dos 40, e o auge registrado num exame foi 118, o que é um número relativamente baixo. No começo do ano, após 10 meses de academia, mas sem controle nenhum de alimentação além de leves prevenções, caiu a 102. Mesmo assim, de posse desse exame, a nutróloga recomendou remédio, aquele mesmo que todo mundo conhece, um por dia. Já meu colesterol é de uma pessoa magra, incrivelmente, ao menos por ora.
Como eu disse acima, não sei se quero fazer a bariátrica. Minha impressão, obviamente rasteira, é que, se eu emagrecer os citados 15 kg (10%) em dois anos, estarei num ritmo em que talvez ela não seja necessária (como se em outras ocasiões eu já não tivesse perdido quantidade similar).
Por outro lado, com a desaceleração metabólica do pós-40, fica cada vez mais difícil emagrecer só com dieta e exercícios, que o digam os 5 kg de diferença de um ano para cá.
E mais: cair para 130 kg pode ajudar a reduzir meus índices e sintomas hoje; bastará daqui a 5 ou 10 anos? E nem falei dos danos às articulações, das varizes e das outras questões que envolvem o envelhecimento e que, de uma forma ou outra, podem ser afetadas pela obesidade.
E eu sei que, como homem, o peso do sobrepeso é menor. Ainda que a gordofobia não tenha gênero, é óbvio que a pressão sobre o “corpo ideal” é muito menor em cima dos homens. Que eu saiba, eu nunca perdi uma proposta de emprego em lugar algum por ser gordo, e sei que mulheres não podem dizer o mesmo.
O peso da culpa e do medo
Também sei que alguém pode vir e dizer “mas nem todo obeso é doente”. Pode até ser, mas meu histórico familiar requer cuidados. Meu pai morreu aos 63 anos, de enfarte, pesando mais de 150 kg, na manhã de 24 de dezembro de 2010. Minha mãe, como já contei, morreu na madrugada de 25 de junho de 1994, aos 47 anos, também obesa, com 1,57 m e mais de 80 kg, em consequência de uma crise de diabetes que, aliada a uma pneumonia mal curada, resultou em parada cardiorrespiratória.
Sigo então nessa inglória luta contra mim mesmo. Tentarei acompanhar a dieta indicada pela nutricionista, ou melhor, o processo de reeducação alimentar, porque a palavra “dieta” traz consigo a impressão de ser algo transitório. E olha que nem é muito diferente do meu dia a dia dos últimos meses, em que temos evitado aqui em casa os doces (ok, não aos fins de semana) e que, apesar de detestar, tenho consumido salada com regularidade e me alimentado de forma relativamente decente, com todos os grupos nutricionais. Também continuarei no exercício, ainda mais com a obrigação de pagar a academia renovada, mas também porque gosto, me traz prazer.
E não quero elogios. Não quero ficar “bonito” na visão de quem tem ojeriza a gordos (quase todo mundo, de uma ou outra forma, muitas vezes nós mesmos, os gordos, ficamos olhando e julgando os demais). Quero saúde, quero bons índices nos exames de sangue, quero aliviar o peso sobre meus joelhos e tornozelos, quero até começar a correr.
Tudo isso talvez seja possível. Já a mente, bem, aí é outra coisa. Sonho com o dia em que vou me livrar dos pensamentos que piscam com frequência na hora da refeição, às vezes só de soslaio, às vezes em cheio, desde os 17 ano: “Só hoje esse docinho, só hoje mais esse bife, amanhã é outro dia”. Substituído pelo “Logo vai melhorar” dos períodos de dieta - que, eu sei, não vai ser logo. Talvez nunca melhore.
Porque deste peso que a mente me impõe, mesmo que faça a cirurgia e volte um dia a pesar dois dígitos, sei que vai ser bem difícil de me livrar.