Hoje faz 30 anos que meu pai foi demitido de seu último emprego na indústria. Confirmei a data, 28 de fevereiro de 1994, olhando na carteira de trabalho dele, que ainda tenho aqui, mas já tinha claro para mim que havia sido em um dia de fevereiro que ele havia chegado em casa contando sobre o fim indesejado da rotina ônibus fretado em Sorocaba antes das 6 da manhã—trabalho em São Paulo—volta para Sorocaba de Cometa no início da noite.
Para o mundo, é apenas mais um exemplo do que o capitalismo faz com os trabalhadores mais experientes: suga-lhes o sangue e a juventude ao longo de 25 ou 30 anos e depois cospe-os fora para dar lugar a outro jovem disposto a executar o mesmo trabalho por um salário muito menor até que chegue a sua vez.
Meu pai tinha na ocasião 46 anos (faria 47 em 10 de setembro), duas graduações (dupla licenciatura, em Matemática e Física, e tecnólogo em Mecânica Industrial) e um currículo que incluía outras cinco empresas, sempre com anos de bons serviços prestados. Em alguns momentos acumulou o trabalho em indústria com o magistério em nível superior, com aulas na Fatec, onde havia cursado a segunda graduação, na Faculdade de Engenharia de Sorocaba (Facens), e na Faculdade Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu - coincidentemente onde eu próprio lecionaria por sete anos e meio no futuro, já com o status de centro universitário e o nome comercial Ceunsp, mas essa é outra história.
Minhas primeiras lembranças profissionais do meu pai remetem a 1982. Eu tinha 4 anos quando ele foi desligado de uma metalúrgica em Sorocaba, a Aparecida, hoje Villares, e logo se recolocou novamente em uma empresa na vizinha Salto, chamada Prema, fornecedora de peças para painéis de carros. Essa mudança nos levou a outra, de cidade: de Sorocaba, cidade da família dele, onde vivia desde que nasceu, inclusive desde que ele e minha mãe haviam se casado, em 1976, para Salto, justamente a cidade dela, onde toda a família ainda residia.
Foram cerca de cinco anos e meio nessa fábrica, que passou por várias mudanças de nome e proprietário (Autolite, depois Allied, depois Siemens), até uma nova saída, em junho de 1988. Para um novo emprego logo depois, em 1º de agosto, na Sabroe do Brasil, empresa dinamarquesa especializada em sistema de refrigeração industrial cuja fábrica ficava na Vila Anastácio, ali perto da Ponte Anhanguera, zona oeste de São Paulo.
Essa mudança de emprego nos levou a uma nova mudança de cidade. Descartando a ideia de morar na capital, meus pais decidiram voltar a viver em Sorocaba, onde já tínhamos nossa casa (que havia sido alugada com a mudança para Salto) e seria mais fácil o transporte diário entre as duas cidades. O ônibus fretado era a solução ideal na ida, passando na esquina de casa e na esquina da fábrica; mas passava cedo demais para quem tinha responsabilidades de gestão, e aí a opção era o Cometa - o mesmo Cometa que eu passaria nove anos pegando futuramente, mas essa também é outra história.
Todo esse prólogo, no fim, é só para detalhar que o que imaginávamos que seria apenas mais uma demissão seguida por nova tentativa de recolocação profissional seria um marco simbólico na vida da família e o início de um terremoto que, se passou, deixou sequelas que são visíveis até hoje.
Na madrugada de 25 de junho, após uma semana com uma pneumonia mal diagnosticada, minha mãe morreu, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Na noite de 7 de setembro, foi a vez da morte da minha avó materna, vítima de câncer no sistema gástrico que já a debilitava havia alguns meses. Eu tinha 16 anos. Meu irmão, 9.
Para as pessoas “comuns”, o ano de 1994 é marcado pelo tetra e pela morte do Senna. Alguns mais fritados em esportes ainda podem destacar a morte do Dener e o título mundial do Brasil no basquete feminino. Como palmeirense, impossível esquecer do timaço que foi bicampeão paulista e brasileiro, mas fracassou na Libertadores diante de um dos maiores rivais.
No campo das notícias ditas “sérias”, é o ano em que Fernando Henrique Cardoso se elegeu presidente pela primeira vez, numa virada incrível sobre Lula, puxada principalmente pelo sucesso meteórico do Plano Real, apresentado ainda em 1993 e que conseguiu enfim vencer o dragão da inflação que comia o dinheiro do brasileiro desde que eu me lembrava por gente.
São efemérides importantes que, ao longo deste ano, serão justamente recordadas pela mídia, e que serão temperadas pelas minhas recordações pessoais, recordações essas que acabam por tornar agridoce qualquer celebração. Por exemplo: toda imagem da vitória do Brasil sobre Camarões, vista e repetida milhares de vezes ao longo dos últimos 30 anos, me recorda que minha mãe foi para o hospital algumas horas depois, ao fim daquela noite de sexta, e não voltou mais.
John Fante chamou um de seus clássicos com a frase “1933 foi um ano ruim”. Usando uma construção similar, diria que 1994 foi um ano-terremoto - que até hoje traz leves tremores e sobressaltos de rebote.
Disclaimer
O texto acima é 100% verdadeiro, pelo menos dentro das minhas lembranças construídas e alimentadas ao longo de 45 (quase 46) anos de vida, com destaque para o período que se passou, Como ao longo desse tempo escrevi muito pouco a respeito desse cruzamento entre efemérides tão marcantes para a sociedade brasileira e os impactos na minha vida, algumas memórias evidentemente podem se mostrar falhas.
Talvez isso seja o que os críticos chamam de “autoficção”, formato que ganhou destaque no mundo literário nos últimos anos, especialmente após a entrega do Nobel de Literatura à genial escritora francesa Annie Ernaux - leiam tudo dela, longe de mim querer chegar aos pés.
No meu caso, é uma tentativa de exercício literário misturado com expiação de sentimentos que nunca passarão totalmente. São 30 anos de “o que a dona Inês pensaria disso”, afinal, inclusive estarei pensando isso no exato momento em que apertar o botão de publicar.
O que é isto, afinal?
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Ao longo dos próximos meses certamente voltarei a esse tema, mas tentarei misturar com outras ideias, comentários, análises e qualquer coisa que o valha, numa tentativa de exercitar a escrita para além do que me rende o pão de cada dia. Para vir comigo nesta viagem, é só colocar seu email no campo abaixo e apertar o “subscribe”.
Que delícia de exercício literário. <3