O dia em que publiquei uma entrevista com um cavalo
Às vésperas dos Jogos de Paris, memórias e desventuras olímpicas.
- Fernandinho! EU ENTREVISTEI O CAVALO! E ele estava tenso!
Era um domingo de manhã, 1º de outubro de 2000, e eu estava acabado, física e psicologicamente. Durante as quatro semanas anteriores, tinha acumulado meu emprego regular num site sobre futebol (já extinto) com uma cobertura da Olimpíada de Sydney para um site.
Como as competições eram de madrugada no horário brasileiro, essa cobertura envolvia chegar npor volta de 2h ao prédio da rádio Eldorado, que já pertencia ao Grupo Estado, mas na época tinha uma sede ali na Aclimação, na rua Pires da Mota, para alimentar a página com algumas notícias sobre as competições do dia - que eu não conseguia assistir por não haver nenhuma televisão perto da mesa e do computador que haviam me designado. (E ainda não havia transmissão de todas as competições por 294 canais diferentes - jovens, aproveitem!)
O hotsite (que nunca entendi porque foi parar no site da Eldorado sem que a gente nunca tenha feito nada em áudio), por sua vez, era a versão digital de um guia impresso no qual eu havia colaborado durante o primeiro semestre, com patrocínio de uma gigante dos cartões de crédito, que circulou em 12 fascículos na “IstoÉ’ e depois foi publicado em livro numa tiragem especial bancada pela patrocinadora, da qual preservo um raríssimo exemplar, edição de colecionador.
Era um produto da Colibri, Jotabê & Associados. Oswaldo Luiz Vitta, o Colibri, e João do Barros, o Jotabê, eram excelentes jornalistas, veteranos no mercado, mas já há algum tempo fora das grandes redações, especializados nesse tipo de trabalho que hoje chamam de “branded content” (mas que quase ninguém mais faz impresso). Eles já haviam feito guias inríveis sobre Itália e Portugal, entre outros materiais, e por algum motivo caí ali.
Colibri, mais versado na área comercial, conseguiu convencer a empresa de cartões de crédito, até hoje patrocinadora dos Jogos, a enviá-lo para uma cobertura prosaica do evento, naquela proposta “aquilo que não sai na mídia”. Com uma credencial limitada, ele ainda levou consigo João Valentino, outro jornalista que havia atuado como repórter e editor na produção do Manual, sem credencial ou ingresso. Ele fez ótimas reportagens na porta dos estádios e na Sydney extra-Jogos.
Em tempo sem SEO (nem Google tinha, né), foi um trabalho bacana, rendeu algumas histórias interessantes que eles apuravam e escreviam sem pressa e eu ia publicando ali na redação da rádio, entre os textos de resultados que eu escrevia meio aleatoriamente - os principais brasileiros em ação no dia, os duelos marcantes de esportes coletivos, basicamente o que me dava na telha. Às 6h, eu caía fora e partia para meu trabalho regular, até 16h. Foram duas ou três semanas dormindo no máximo 4 horas por dia. Ah, o vigor dos 22 anos...
Você deve se lembrar que o Brasil não ganhou nenhuma medalha de ouro em Sydney.
Chegamos à última madrugada, porém, com altas expectativas: Rodrigo Pessoa e seu cavalo, Baloubet du Rouet, vinham de um tricampeonato mundial consecutivo e eram favoritíssimos à medalha de ouro na prova individual de saltos do hipismo, depois de contribuírem para o bronze por equipes.
Teve chamada de apresentação no JN, manchete nos principais jornais no país, Galvão Bueno a postos para narrar a final. E Baloubet, vocês sabem, refugou. O Brasil ficava sem uma medalha de ouro pela primeira vez após cinco Olimpíadas seguidas desde Moscou-1980.
A jornada de herói de Baloubet, da refugada ao ouro em Atenas-2004, está contada neste documentário. Vale assistir.
Eu acho que sempre fui um cara mais Olimpíada do que Copa do Mundo.
Desde pequeno qualquer competição esportiva na televisão me atraía - e ainda que meus primeiros flashes esportivos de memória sejam da Copa de 1982, tenho lembranças claras de estar vendo com meus pais pela TV o lendário jogo de vôlei no Maracanã organizado por Luciano do Valle em 1983, um Brasil 3 x 1 União Soviética debaixo de chuva com direito a Jornada nas Estrelas do Bernard.
Também consigo me lembrar da sala da casa onde vivia em 1984 (era outra) e na qual paramos tudo o que estávamos fazendo para ver o ouro do Joaquim Cruz nos 800 m, da frustração da minha mãe com pena do Ricardo Prado quando ele levou a prata nos 400 m medley atrás de um canadense que tinha uns 40 cm a mais e do ódio por Karch Kiraly que meu pai pegou para o resto da vida por causa da final do vôlei masculino.
E eu seria capaz de enumerar memórias de cada um dos Jogos seguintes até Sydney. Aquele emprego, para organizar o fluxo de produção do Manual dos Jogos Olímpicos, tinha sido o meu primeiro na chegada a São Paulo, depois de (quase) concluir a faculdade de Jornalismo (o quase fica por conta de algumas matérias que ficaram em DP). Era uma época boa para conseguir emprego como jornalista, a primeira “bolha da internet”. Meses depois consegui outro, no site de futebol, indiquei uma amiga para ficar com meu lugar na agência que já organizava nos trabalhos e combinei com os donos de voltar para a cobertura olímpica propriamente dita. O Jotabê1, que não havia viajado à Austrália, brilhante escritor e editor, deixava as matérias dos “enviados especiais à Terra do Canguru” no jeito e eu publicava no site de madrugada, de forma precária, criando páginas em algum editor de HTML e editando a home de notícias.
Mas naquele dia não fui trabalhar de madrugada. Era o último dia dos Jogos, o Brasil só teria aquela chance de medalha, com a decisão sendo já de manhã, e eu pus o despertador para acordar, ver a prova antes de sair e só escrever o texto chegasse à rádio, que não tinha plantão - poderia ficar o quanto quisesse.
Só que eu rodei, dormi na sala na frente da TV e acordei já depois da prova, já com um arremedo de mesa redonda e o Léo Batista dizendo que tínhamos ficado sem o ouro. Tomei o banho mais rápido da vida e saí correndo, tentando entender no caminho, pelo rádio, o que tinha acontecido. Ao chegar à rádio, escrevi uma nota rápida e estava publicando quando toca meu celular.
Lembrem-se, estamos falando de 2000. A Austrália estava 14 horas à frente e, se eram 9h em São Paulo, em Sydney já passava das 23h.
- Fernandinho! EU ENTREVISTEI O CAVALO! E ele estava tenso
- Pelo amor de Deus, Colibri, do que você tá falando?
- O cavalo! Que refugou! Eu entrevistei ele!
- Como assim, cacete?
- Você não viu a prova do hipismo, o Baloubet?
- Sim (não, mas ele não precisava saber, já tinha “recuperado” a informação, como se diz no jargão jornalístico). Mas como assim entrevistou?
- Eu fui ali onde estavam as cocheiras, entrei meio escondido e tentei filmar, deu pra ver ele batendo as pernas nas paredes. ele tava nervoso. Eu gravei com a câmera.
Com parte da verba para a viagem e a “expedição”, ele tinha comprado uma Sony qualquer, primeiro modelo que eu vi de câmera digital. As fotos em melhor qualidade tinham 2MB e os vídeos eram de 640 pixels, e acho que tinham limite de 1 minuto.
- Tô chegando no hotel e vou tentar te mandar os vídeos. É um furo! Exclusivo!
Faro de repórter é faro de repórter, né, mesmo vivendo de branded content. Resignado, desliguei o telefone. Meia hora depois, menos esbaforido, o chefe liga, e em algum tempo chegam as fotos e o vídeo. Não dava pra ver nada direito. Mas dava pra ouvir, de fato, as tais patadas do cavalo. “Não deu pra ficar muito, logo veio um segurança e me mandou embora”, ele contou.
Em tempos sem YouTube, não me lembro como fiz para subir o vídeo, que de alguma forma foi para o ar, junto com um breve relato que escrevi a partir do que ele me contou.
Depois, escrevi mais algumas coisas, uma nota sobre a cerimônia de abertura e fechei definitivamente a lojinha. Voltei a ser um Associado de Colibri e Jotabê em outros projetos nos anos seguintes, e uns seis meses antes de cada Olimpíada entre Atenas e Rio nos reuníamos para pensar num jeito de emplacar novamente algum trabalho olímpico, usando parte do material que de fato era muito bom, mas nunca deu certo (inclusive ele ainda tinha um DVD com os arquivos da “entrevista”). Na Olimpíada de Atenas-2004, inclusive, não trabalhei na cobertura porque estava como editor de um programa de rádio dirigido e apresentado por ele, voltado ao ramo sindical
(Trivia: na fase da revisão, levei essa página acima e todo o conteúdo já escrito sobre vôlei para o Montanaro, um dos craques da geração de prata em Los Angeles-1984, então dirigente no Banespa. Disse a ele que minha mãe era fã dele, achava ele lindo. Ele ficou constrangido. Depois, aprovou o conteúdo, fez algumas observações e me emprestou um monte de revistas italianas de vôlei, que não devolvi. Devem estar com o Colibri até hoje.)
Em Pequim-2008, cobri localmente, pela TV, no Estadão. Londres-2012 e Rio-2016 só assisti, esta última ao vivo. Mesmo numa fase financeiramente ruim à época, comprei os ingressos mais baratos que achei, duas passagens da 2001 e fui num domingo ao Rio para uma série preliminar de judô e uma vitória do Brasil no handebol masculino, ao menos para dizer que estive lá e trazer dois copos que tenho até hoje.
Em 2019, num período em que fiquei sem trabalho como jornalista e sobrevivi graças ao magistério, comecei a produzir o OlimpCast, um podcast que se propunha a contar a história dos Jogos Olímpicos, e que aos trancos e barrancos chegou a 37 episódios. Pode ser encontrado aí embaixo e em outras plataformas do ramo, mas é um projeto inconcluso, porque os episódios históricos param em Pequim - ainda não há distanciamento para contar as outras, digo a quem me pergunta, mas a verdade é que não deu mais tempo de fazer, mesmo, e a necessidade atropelou o gosto.
Só lamento não ter guardado o vídeo da entrevista com o Baloubet. Daria um reforço e tanto para esse episódio.
Jotabê me deu um Lada Laika SW de presente. Um dia conto essa história, porque ela merece outro texto.
Você sabia que agora tem outra égua famosa e polêmica nos jogos de Paris?
Que bastidor delicioso!