Era algum dia no segundo semestre de 1999 quando alguém soltou: “Vai ter palestra do Ziraldo!” e eu, automaticamente, pensei: “Será que pega mal trazer o meu Menino Maluquinho pra ele dar um autógrafo?”
A dúvida é porque estávamos no vetusto Estadão, onde eu era então um jovem repórter a alguns meses de me formar em Jornalismo (esses meses depois virariam um ano e alguns meses, mas essa é outra história) e fazia o Curso de Talentos do jornal, conhecido no meio como o “curso dos Focas”.
Era setembro, confirmei agora numa consulta ao acervo do jornal, e a palestra seria parte da Semana Estado de Jornalismo, outro evento organizado pelo jornal para estudantes. Como a sala dos Focas era em frente ao auditório, e não teríamos aula durante o momento da palestra, poderíamos ver o grande cartunista e talvez eu tivesse a cara de pau de pedir meu autógrafo.
Mas vocês sabem como é jovem, ainda mais jovem jornalista, ainda mais, imaginem, dentro do centenário jornal situado ali na Marginal do Tietê. E daí a pergunta lá do primeiro parágrafo: jornalista tem que ser imparcial, jornalista não pode se empolgar, jornalista não pede pra tirar foto com entrevistado nem pede autógrafo. Eu nem era ainda um ”jornalista do Estadão”, o que só viria a ser anos depois. Mas esse tipo de postura meio que impregna, contamina, ainda mais quando a gente é jovem e quer impressionar.
Pelo sim pelo não, no fim de semana aproveitei a viagem a Sorocaba para pegar na casa do meu pai meu exemplar de O Menino Maluquinho, clássico absoluto do Ziraldo, que então já devia ter mais de dez anos e estava com a brochura toda despedaçada e grudada com durex.
No dia da palestra, tivemos aula pela manhã e, depois de almoço, quando se aproximou a hora, bateu o nervosismo acompanhado da dúvida: “E aí, peço ou não peço o autógrafo?”
Então, de repente, ainda estávamos na sala quando o Chico Ornellas, coordenador do curso e das palestras, se aproximou trazendo o Ziraldo. Ele passou, cumprimentou todo mundo e eu fiquei completamente sem reação. Eles foram embora para a sala de palestra e eu fiquei com cara de tacho e um livro meio arrebentado na mão.
No fim, eu acho que nem assisti à palestra, ocupado que estava com tarefas do curso e da faculdade. E nunca mais tive a chance de encontrar o Ziraldo pessoalmente.
Pessoa desapegada que sou (a muito custo, como sabe quem leu este texto), inicialmente imaginei, ao ler no fim de semana sobre a morte do Ziraldo, que não tivesse mais o livro, perdido ou doado entre tantas mudanças ao longo desses quase 25 anos.
De repente, num estalo, resolvi olhar no guarda-roupa do quarto da Iara, onde estão guardadas algumas revistas cujo apego por elas venceu as tentativas de desapego - horas antes eu tinha tirado um exemplar de Asterix e os Godos dali para mostrar a ela, durante o almoço. Dito e feito.
Lá estava o livro, agora condenado a ficar eternamente sem o autógrafo do autor. E qual não foi minha surpresa, ao abri-lo, descobrir com a letra da minha mãe que na verdade o livro é… do meu irmão?
Diga-se a verdade, em casa a gente sempre foi relativamente desapegado quanto a isso de propriedade dos bens culturais, e meio que eu acabei assumindo a posse de tudo depois que meu pai morreu, como se, ao comprar a metade da casa do meu irmão, eu tivesse feito a compra “porteira fechada”. De fato, ele levou apenas algumas coisas, livros e apostilas dos tempos da faculdade, roupas e bens pessoais.
Mas, como também não é bobo e como também é pai, já me avisou: esse ele quer de volta.
Faz sentido: talvez ele só se lembre lendo isso aqui, mas O Menino Maluquinho foi uma das obras responsáveis pela sua alfabetização, Lembro de ler junto com ele o livro, de rirmos à beça com a parte dos macaquinhos no sótão e do fogo no rabo, e algum tempo depois de ele meio que decorar e interpretar o livro, para o encanto dos adultos da família.
Algum tempo depois, o álbum da Copa de 90 e seus muitos impronunciáveis nomes estrangeiros, que eu lia pra ele cinco ou seis vezes por dia até ir viajar sozinho nas férias com a minha avó, deixando ele sozinho com o álbum, completou o serviço. Um belo dia, num posto de gasolina, ele leu “Himalaia” e minha mãe quase desmaiou.
Tivemos outros livros do Ziraldo em casa, mas esses de fato se perderam, assim como os exemplares da Revistinha do Ziraldo, lançada ali na virada dos anos 80/90, com quadrinhos dos personagens dos livros (as historinhas do Flicts traziam filosofia para Horácio nenhum botar defeito), seções de piadas e passatempos, num formato maior, tipo aqueles almanaques de férias da Turma da Mônica. Também ficaram por aí alguns gibis da turma do Menino Maluquinho, esses no formato tradicional, que circularam alguns anos depois, mais pra segunda metade da década de 1990.
Já alguns exemplares da Bundas que comprei, confesso que sem me empolgar muito, é possível que tenham ido parar na faculdade em que lecionei de 2014 a 2022, junto com as Super Interessante, Caros Amigos, Placar, Rolling Stone, Piauí e outras que deixei de presente lá na sala da Redação, onde tínhamos nossas melhores aulas. Melhor que servissem de inspiração para as próximas gerações de jornalistas do que ficassem armazenando poeira em casa,
Fica o livro de capa dura com as reproduções do Pasquim, e ficam as memórias desse gigante que um dia me deixou sem reação por sua simples presença. Obrigado, Ziraldo.
Que história bacana. :)