Devo ter passado mais de um ano com a mensagem ameaçadora do Google: “Seu espaço de armazenamento está se esgotando”. Quando a conta superou perigosamente os 14 GB, dos 15 GB disponíveis no serviço gratuito, resolvi enfrentar o desafio de entender o que tanto poderia ser apagado para abrir espaço.
Não foi a primeira vez: em outras ocasiões precisei esvaziar esse e-mail que uso desde 2006, quando 1 GB parecia um espaço eterno e impreenchível - tanto que as mensagens mais antigas são datadas de 2007. Também me lembro de já ter esvaziado o possível nas outras ferramentas que ocupam espaço, o Google Fotos (pouca coisa) e o Drive (bastante coisa, embora muito já tenha sido apagado e baixado para guardar nos HDs externos).
Com auxílio de uma ferramenta de pesquisa que apresentava os e-mails por ordem de tamanho dos anexos, deparei-me com slides de aulas enviadas aos alunos durante o tempo em que lecionei na faculdade de comunicação, entre 2014 e 2022 - a maioria dos primeiros anos, já que desde 2017 a instituição usava uma ferramenta para o envio de material. Material bruto para freelas que realizei entre 2012 e 2013. E-mails que o diagramador de um jornal aqui de Sorocaba me enviava com as páginas em PDF para que eu economizasse tempo e esbanjasse qualidade num freela de clipping, que deixei de fazer em 2010 - era muito mais fácil abrir o PDF do que escanear o jornal num scanner de formato A4, antes do tempo das impressoras multifuncionais.
Achei até e-mails do meu pai, mais ou menos dessa época, com páginas escaneadas por ele de outro dos jornais da cidade, provavelmente em algum dia em que viajei e ele me ajudou a ter acesso ao material local. O mais antigo de todos, datado de 12 de abril de 2008, tem textos que eu deveria revisar para um jornal comunitário local, para o qual ele colaborava, e que foi o ponto de virada para minha escolha do jornalismo como profissão, mas qualquer dia conto essa outra história. Sei que não tenho a resposta, porque em ocasiões anteriores apaguei todos os e-mails enviados - só os tenho guardados desde 2012, em exatas 3.008 mensagens.
No momento em que escrevo este texto, são exatas 6.678 mensagens na caixa de entrada, mais: 1.060 na pasta “social”; 65 “promoções”, e olha que esvaziei essa pasta no esforço de ganhar espaço; 18.298 “atualizações” e 350 “fóruns”. O espaço ocupado no perfil está em 7,64 GB. Isso deve me garantir sossego por alguns meses, até a próxima necessidade de esvaziamento ou o dia em que, enfim, eu aceitar que preciso pagar pelo serviço.
O curioso é que, ao mesmo tempo em que refletia sobre “por que a gente guarda tanto lixo no e-mail, tanta coisa que não precisa”, e também somo “como deixei chegar a 6 mil e-mails na caixa de entrada”, me deparei, procurando coisas que estão provisoriamente guardadas no guarda-roupa do quarto da filha, com o DVD da foto abaixo. Fechadinho, novo em folha, pronto para ser queimado e receber incríveis 4,7 GB de informações - menos que um terço do meu espaço no Google.
Pior: eu não tenho nem onde usar direito esse DVD aqui em casa - o laptop que uso no dia a dia ainda tem leitor e deve gravar DVDs, mas não tenho mais software para isso e não faço isso há, sei lá uns 15 anos, no mínimo. O laptop da Alê, mais novo, não tem nem sequer o leitor. E o leitor do PlayStation 4 está com defeito, tanto que só tenho conseguido jogar o que tem no HD, só de pensar em levar para a manutenção me dá preguiça, isso pra não pensar no gasto.
Mas eu não quis jogar fora o DVD. Tá novinho, sabe?
Da mesma forma que não quis apagar um dos poucos rastros digitais do meu pai que sobraram desde 2010, quando ele faleceu. Da mesma forma que foi um inferno desapegar de tanta coisa que ele e minha mãe acumularam ao longo de décadas e parte ainda continua sob minha custódia - como o livrinho que está na mesma foto, parte de uma coleção chamada Biblioteca das Crianças, publicado pela Abril Cultural em fevereiro de 1974 - quando meus pais nem sequer se conheciam.
A dificuldade das pessoas em desapegar das coisas materiais virou tema comum nos últimos anos, exibida em reportagens, documentários e até como estrela do reality show Acumuladores, que apresentou alguns casos extremos de pessoas soterradas em papéis de bala e outros tipos de coisas.
Posso dizer que nasci numa família de acumuladores, mas sempre achei que fôssemos de nível moderado. A gente guardava os gibis da Turma da Mônica do meu tempo de criança, começo dos anos 80, ainda publicados pela Abril, mas não era de forma lá muito organizada como os gibis Disney da segunda metade dos anos 60, que meu pai, ainda solteiro, tinha mandado encadernar em livros com capa dura. (Uma decisão desastrada tanto do ponto de vista do valor material, segundo os entendidos em colecionismo, quanto da leitura, que se tornava quase inviável, agravada ainda por cima porque o pessoal da encadernadora fez um serviço péssimo, chegando a cortar pedaços de algumas revistas para manter o alinhamento.)
E nem falei das outras revistas, dos livros, dos discos de vinil, das fitas cassete. E de uma curiosa pasta em que meu pai, que nunca foi um cinéfilo de primeira linha, guardava apenas as páginas de cinema extraídas da Veja, algo que nunca entendi por que ele fez e ele mesmo não soube explicar nas vezes em que perguntei - era algo como “ah, caso assista um dia tem a crítica aqui”. Gente, era coisa pra cacete, posso assegurar. E vale lembrar que, ao ficar viúvo, em 1994, meu pai não mexeu em praticamente nada disso - se desfez apenas das roupas da minha mãe, doadas ao Lar São Vicente de Paulo.
Só fui me dar conta do grau de acumulação quando resolvemos, no fim das contas, depois de levar as roupas dele novamente aos vicentinos (que futuramente levariam também parte do enxoval de cozinha), arrumar a casa para uma necessária reforma que ele, com o salário de professor aposentado, não conseguiu bancar.
Então descobrimos que ele guardava - de forma metódica, com elásticos - não só as contas de luz e as faturas de cartão de crédito dos últimos anos, muito além da validade necessária, como mantinha em pastas recibos e notas fiscais dos materiais de construção usados para erguer a casa, entre 1979 e 1981.
Devíamos ter umas seis ou sete edições de diferentes enciclopédias, nenhuma delas posterior a 1980. A Barsa, minha referência preferida para os trabalhos de escola, era de 1966 ou algo assim, tanto que o último papa ali era o Paulo 6º. Havia a coleção dos Clássicos da Literatura Universal, também da Abril Cultural (como minha família deu dinheiro pros Civita, pelo amor de Deus), aqueles de capa vermelha, que minha mãe havia comprado quando solteira e traziam na primeira página os nomes dela e do rapaz com quem ela namorou por oito anos (ou nove, talvez 10), chegou a marcar casamento e aplicou um pé na bunda ao descobrir uma traição. Outra curiosidade: meu pai tinha a mesma coleção, que deu para minha tia, sua irmã mais nova, depois de casar.
Descobrimos ainda pastas e bolsas com toda a nossa vida escolar - minha e do meu irmão. Provas com a ponta amassada, alguns livros didáticos amarelados, cartilhas, trabalhos. Tudo para o lixo, exceto duas redações, uma da quarta série e outra da sétima, que guardei como prova de que escrevia bem desde criança. (Talvez melhor que hoje? Questões…)
Obviamente foi um processo longo o de desapegar da acumulação dos meus pais, e ao mesmo tempo da minha própria mania de guardar coisas, já iniciada então com louvor e distinção - por exemplo, dezenas de exemplares de SuperInteressante, Placar e Bizz. Foram anos de separação das coisas e da consolidação da decisão de que, ora, é melhor jogar isso fora.
Lembro do dia em que, tudo mais ou menos arrumado sobre mesas e em pilhas na garagem, um dono de sebo foi até lá para olhar se havia algo de interessante. Olhou, olhou, selecionou uns 20 livros, combinou um preço, deu o dinheiro, perguntei “Agora você cobra quanto pra levar tudo?”, ele riu, não cobrou nada e levou boa parte dos livros.
Já as enciclopédias, algumas foram deixadas em sebos, inclusive à revelia - após uma recusa não muito educada de um proprietário, deixei algumas caixas na frente do estabelecimento durante a madrugada.
Os quadrinhos foram os que receberam o melhor tratamento: tanto os encadernados como os gibis soltos foram doados a uma turma que está montando um museu dos ferroviários aqui em Sorocaba - ao fim, parte da origem das revistas, já que meu avô trabalhou por décadas na então Estrada de Ferro Sorocabana.
Os últimos livros da ultimíssima leva, já no processo de pandemia, em junho de 2020, com a necessidade de esvaziar logo a casa por motivos de mudança, foram mesmo para a reciclagem - ainda que alguns tenham sido salvos pelos catadores das cooperativas para onde levei o material.
Sobrou pouca coisa. CDs com alguma história afetiva muito importante, DVDs e livros idem. Algumas revistas em quadrinhos, preservadas para as leituras das próximas gerações. Os anacrônicos e curiosos livros da Biblioteca das Crianças, muito mais pelo prosaico. Os discos de vinil ficaram com meu ex-sogro, que juntou a coleção do meu pai à dele para supostamente tentar vender algum dia - que eu saiba não conseguiu nada e os discos seguem lá, provavelmente serão fruto de um novo processo de desapego em alguns anos, do qual não farei parte. As fitas cassete, inclusive as que abriram a porta da música na minha mente, como o Bora Bora do Paralamas e o Dois do Legião, foram igualmente para a reciclagem - com dor no coração, mas foram. Mesmo que eu soubesse que um dia o cassete voltaria à moda, era melhor assim.
E fotos. Centenas, milhares de fotos. Muitas espalhadas, algumas nos pequenos álbuns que vinham de brinde para as revelações 12x8 da época, as mais importantes organizadas em grossos álbuns Kassuga com filme protetor, nos quais minha mãe escrevia comentários graciosos ou desenhava corações quando aparecia alguma menina por quem eu eventualmente me apaixonava - por exemplo na quadrilha da terceira série. Raras, porém, são as fotos em que aparecemos os quatro juntos - meu pai, minha mãe, meu irmão caçula e eu, como na miniatura da foto acima. Em tempos pré-selfie, e com meu pai sendo o dono e o louco da máquina, era muito raro conseguir outra pessoa, como nessa ocasião, que pelo tamanho do meu irmão imagino ser em algum momento de 1986, para que fôssemos registrados todos juntos. As fotos, essas eu vou guardar o tempo que for.
O espaço digital era raro no começo da internet. Para imprimir meu TCC, um encarte de jornal em formato tabloide de 12 páginas, diagramado em PageMaker 6.5, precisamos zipar a pasta de arquivos em 12 ou 13 disquetes.
Meu primeiro e-mail, criado em 1997, foi do Yahoo e tinha 6 MB de espaço, o equivalente a quatro disquetes. Tinha que apagar mensagens constantemente e perdi muita coisa - mas me arrependo mesmo do dia em 2000 ou 2001 em que configurei o Yahoo no Outlook Express do computador do trabalho. Ele baixava e apagava os e-mails. Quando deixei o emprego, passei horas fazendo o backup desses e-mails, que nunca mais consegui abrir e obviamente não fazia ideia, já alguns meses depois, de onde tinha ido parar o CD
Passados 25 anos e com 2.500 vezes mais espaço dentro do e-mail gratuito, a evolução da informática tornou os arquivos mais pesados e o armazenamento supostamente mais fácil, mas ainda, de alguma forma, escasso. E, no entanto, os mais de 20 mil e-mails continuam lá. Por quê?
“Ah, pode ser útil”, penso eu, lembrando que semanas atrás passei um orçamento para um possível cliente de um freela e entreguei como portfólio um trabalho feito em 2013 - que ele achou interessantíssimo, diga-se. Outro motivo, mais real, é que daria trabalho demais para olhar um por um dos 20 mil emails - mais caro, em uso do escasso tempo e até em dinheiro gasto com internet e energia, do que eventualmente pagar a tarifa do provedor por mais espaço.
E ao mesmo tempo em que o acúmulo físico se tornou um peso, seja pela carga negativa deixada pelos exemplos extremos de gente soterrada em lixo, seja pelo espaço cada vez mais exíguo das moradias, temos visto nos últimos tempos que os ambientes digitais, principalmente os pagos, não são exatamente a fonte mais confiável para a preservação da memória coletiva, vide os discos que têm sumido por discussões sobre direitos autorais e os filmes removidos das diversas plataformas por economia de banda. para evitar pagamento de direitos residuais aos profissionais envolvidos ou simplesmente para criar a sensação de escassez que movimenta o capitalismo - e, em última instância, mantém vivos os queimadores de DVD.
De minha parte, não nego que eventualmente bate sim um arrependimento por não ter preservado mais coisas da memória dos meus pais que se foram tão cedo, mas logo passa. As músicas presentes nos discos, eu consigo ouvir de outro jeito; os livros que realmente importam são reeditados com frequência e existem em versão eletrônica - mesmo que os aplicativos saiam do ar, outras opções aparecerão.
O que faz falta, mesmo, e isso é irreversível, são as conversas que não tivemos, as discussões que ficaram por vir, as perguntas que não consegui ou nem sequer pensei em fazer, os abraços e beijos que não puderam mais ser dados. Restam só a memória, que tento preservar aqui nesses textos, e a imaginação.