Nesta madrugada, de 24 para 25 de junho, fez 30 anos que a minha mãe morreu.

Como nesta madrugada, horas depois de um jogo da Seleção Brasileira nos EUA - é bem verdade que um jogo um tiquinho mais importante, de Copa do Mundo, com um resultado bem melhor, 3 a 0 sobre um remendado time de Camarões, algumas horas mais cedo e, aí sim temos coincidências, muita gente reclamando do técnico tal e qual após este medonho 0 a 0 contra uma fraquíssima seleção da Costa Rica.
Como eu previa no primeiro texto desta newsletter, com link aí abaixo, toda pequena ou grande efeméride que completou 30 anos nos últimos meses - plano Real, morte do Dener, morte do Senna, meu aniversário, campanha do tetra - foi salpicada do amargo gosto dessa minha tragédia pessoal que, simplesmente, não tem conserto, não tem cura, não tem consolo - por mais consolada que já tenha sido por tanta gente bem intencionada, e eu agradeço a todos que o fizeram ao longo dessas três décadas, desde a Mariclara, minha ex-professora de Geografia e OSPB (sou desse tempo), melhor amiga da minha mãe, que acompanhou meu pai até em casa para dar a notícia na manhã de sábado, até pessoas que vieram comentar postagens do texto citado acima.
E quando eu falo “não tem consolo”, é porque essa é uma marca que não se apaga, uma cicatriz que nunca fecha, uma curiosidade que não tem resposta.
Queria muito saber o que minha mãe achou de cada uma das coisas que fiz nesses 30 anos, da escolha do curso universitário aos vídeos que gravo para o trabalho, entre inúmeras outras coisas e decisões tomadas sempre com o pensamento “mas o que ela ia achar?” (Oi, Freud, um beijo.)
Ao mesmo tempo, um certo pavor me impediu nesses últimos meses de abrir os cartões de aniversário que ela me deixou, colados nas capas dos álbuns Kassuga que resistiram ao tempo e preservaram sua letra com comentários bobinhos entre as fotos. Simplesmente travo, e é isso.
Quando criei esta newsletter, escrevi que de certa forma ela me serviria de terapia quando tivesse que abordar essas questões; por outro lado, achei que se tornaria um pouco sacal para os aventureiros leitores insistir nesse monotema; e, de toda forma, novas funções de trabalho reduziram meu tempo livre acordado a ponto de quase não conseguir escrever sobre nada - quando o faço, como agora, à custa do sacrifício de momentos fundamentais de sono.
Mas hoje eu senti que tinha que escrever isso, que precisava deixar registrado que, numa madrugada como esta, há 30 anos, minha mãe morreu.
As memórias que guardo e a que não quis criar
Até hoje, passados 30 anos, eu não sei o que aconteceu exatamente naquela madrugada. Era uma noite fria, meu pai não estava em casa, tanto minha mãe como eu estávamos doentes, eu tinha faltado da escola e do estágio praticamente a semana toda e ela não tinha ido ajudar na Festa Junina Beneficente, o que era realmente uma prova de que estava mal, porque era difícil tirá-la de compromissos com suas obrigações religiosas.
A Festa Junina Beneficente de Sorocaba era então realizada então num descampado onde hoje fica a Praça da Amizade, em frente ao CIC (Estádio Walter Ribeiro, para os que só o conhecem dos jogos do São Bento)e tinha importância fundamental no caixa das entidades que tinham a chance de ocupar uma das barracas, então disputadas quase a tapa.
Meus pais eram vicentinos, ou seja, membros da Sociedade de São Vicente de Paulo, uma organização de leigos católicos que se reúnem em pequenos núcleos, as chamadas “conferências”, e atendem a famílias carentes com cestas básicas e mantimentos, em visitas domiciliares que também contam com oração e leitura da Bíblia. E o grupo do qual eles participavam, a Conferência Santa Filomena, tinha a chance de ocupar uma das barracas. Então o pessoal se dividia ao longo do mês de junho no trabalho, fazendo bico gratuito de cozinheiros, garçons e caixas. Meu pai, com toda a classe que jamais teve, era responsável pelo atendimento às mesas, e eu o ajudava quase sempre. Minha mãe cuidava dos pastéis: temperava e cozinhava a carne em casa, durante o dia, fritava e entregava aos atendentes à noite. Centenas deles, todo dia, toda noite, ao longo de três semanas. Mas naquela semana a coisa tinha sido diferente: minha mãe já vinha resfriada e começou a piorar; meu pai, que estava desempregado, continuou indo, mas sozinho.
Da nossa última conversa me lembro bem: ela me pediu uma garrafa de água com gás, que deixávamos no quintal, onde havia uma geladeira velha. Olhei na geladeira e não tinha nenhuma, mas achei algumas numa caixa de papelão ao lado. Mesmo fora da geladeira, estavam geladas. Peguei uma, levei para ela, que estava deitada na cama. “Olha, tá gelada, e nem estava na geladeira”, ela riu, levantou-se, agradeceu, tomou uma golada e foi isso. Voltei ao meu quarto, pesado de sono, e fui dormir. Nem ouvi meu pai chegar.
Quando acordei, pela manhã, o quarto deles estava vazio. Estranhei que tivessem saído; minutos depois, ou talvez tenha sido uma ou mais horas, meu pai entrou com a amiga dela, minha professora da oitava série, dizendo que minha mãe tinha falecido. “Oi? Como assim?”, ele tentou explicar algo e eu mal consegui ouvir: provavelmente anestesiado, virei as costas e voltei para a cama. Dormi de novo. Eles foram conversar com meu irmão caçula. Acordei, nada tinha mudado.
Meu pai viveu por mais 16 anos; morreu dormindo na manhã de 24 de dezembro de 2010, de enfarte fulminante, com duas festas de Natal para ir vestido de Papai Noel nas horas seguintes, mas essa é uma outra história. Aqui, o que importa é que, nesses 16 anos, eu nunca tive coragem de perguntar exatamente o que aconteceu naquela madrugada de 24 para 25 de junho de 1994. Passados outros 14, continuo sem coragem de perguntar a pessoas queridas que talvez tenham respostas.
Me interessa, tenho curiosidade? Sim. Mas, no fundo, sei que não vai mudar nada. Não vai trazê-la de volta. Não vai me dizer o que ela achou deste texto (piegas, talvez ela dissesse). Não vai curar, nem consolar, talvez só abra outras feridas já cicatrizadas em outras pessoas.
Talvez um dia eu pergunte, depois de umas taças de espumante. Certamente um dia lerei os cartões de aniversário novamente. Um dia. Por ora, fico com a saudade.
Sinto tanto. É lugar comum demais dizer que mães deveriam ser eternas? É sim, eu sei. Sinto demais, demais. Receba meu abraço.