Um viva para eles que ainda vivem em nós
Reflexões e memórias no dia em que meus pais fariam 48 anos de casados
Meus pais fariam 48 anos de casados hoje, 12 de novembro. Supostamente, bodas de granito, vi num site por aí.
Eles se conheceram no trabalho: meu pai fazia alguma coisa mais ou menos importante na subsede de Sorocaba na Light, a então empresa privada de energia de São Paulo que seria estatizada depois pelo Maluf, virando a Eletropaulo, e ela era secretária do do escritório da empresa em Salto, cidade vizinha, a mais ou menos 40 km, escritório esse que estava subordinado ao de Sorocaba.
Num belo momento, a Clélia, que ocupava a mesma função que a minha mãe no escritório de Sorocaba, entrou em licença-maternidade para ter a Kátia (muitos anos depois a Katia me daria várias caronas entre Sorocaba e Bauru em fins de semana, mas essa é outra história).
A coisa aqui fica um pouco nebulosa porque eu não sei se meu pai já tinha se interessado ao ver minha mãe em Salto, já que ele costumava visitar as cidades da região, ou se ele só a conheceu nesse período em que ela ficou em Sorocaba. O fato é que ele se interessou, mas ficou meio que nisso por um tempo até que, depois que a tia Clélia voltou da licença, ela deu um empurrãozinho e os dois começaram a namorar. Salvo engano, em 12 de maio de 1975, o que seria exatamente três anos menos um dia do meu nascimento (que, minha mãe dizia, estava marcado para o dia 12, mas queimei a largada).
(É curioso ver que aos olhos de hoje essa relação teria algumas coisas problemáticas; embora não fosse chefe, meu pai tinha alguma superioridade hierárquica sobre ela, o que poderia sinalizar algum tipo de assédio - ainda que qualquer pessoa que tenha conhecido meu pai saiba que seria improvável. Fora que os dois usavam o malote da empresa para enviar cartas um ao outro. Enfim, um pouco de subversão contra o capitalismo nunca faz mal.)
Os dois já se aproximavam dos 30 anos, idade em que naquela época as mulheres solteiras já eram vistas sob o risco de “ficar para titia” enquanto os homens solteiros tinham sua sexualidade questionada (geralmente à boca miúda). Minha mãe vinha de uma decepção amorosa pesada: um namoro de quase uma década, ao que eu saiba já com casamento marcado, que acabou desfeito ao descobrir traições recorrentes do noivo. Ficaram para o registro histórico alguns dos exemplares da “História da Literatura Universal”, coleção da Abril Cultural de capa vermelha que tinha vários clássicos, de Camus a Dostoievski, com o registro “Inês e Flávio - 1973”. Eu me desfiz desses livros na última leva do meu processo de desapego descrito no texto abaixo.
Meu pai, por sua vez, era tão discreto que eu nunca consegui confirmar que minha mãe tinha sido sua primeira namorada. Imagino que ele já tivesse passado por um ou outro rolinho anterior, mas nada muito sério. Ele era um cara tímido no contato inicial, que precisava de alguma intimidade para se soltar, e imagino que tinha as mesmas dificuldades que eu tive nos flertes e paqueras até chegar aos finalmentes.
E o namoro não começou lá muito fácil, porque consta que meu avô gostava muito do “Flavinho” e demorou pra aceitar o fim do relacionamento anterior de sua última filha solteira (a caçula é a Tia Dora, que casou mais cedo e, claro, muita gente pensou que ela estava grávida, o que não era verdade).
Existe a versão de que o seu Julio, teimoso como bom filho de Nhô João Tristão que era, nunca aceitou direito meu pai, mas a verdade é que jamais saberemos porque ele morreu em setembro, algumas semanas após o nascimento da Cintya, a filha do meio da Tia Dora, minha prima-irmã tão irmã quanto prima.
Também pela morte recente do meu avô, o casamento em si acabou sendo mais simples, sem festa: apenas uma breve recepção com bolo e champagne no salão paroquial da Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat, sob as bênçãos do monsenhor Mário Negro, vulgo “Padre Mário”, sacerdote lendario da cidade, o homem que tinha as maiores mãos que eu já vi, tio do Joca, nosso vizinho e pai do Juliano, um dos meus melhores amigos de infância.
No fim, a questão do trabalho acabou resolvida com a saída dos dois da Light: ele foi trabalhar numa metalúrgica de Sorocaba, a Aparecida (hoje Villares) e minha mãe, sem conseguir uma transferência definitiva para o escritório da empresa em Sorocaba, acabou se demitindo e ficando sem trabalhar - e o que seria provisório foi ficando definitivo quando engravidou de mim, em agosto de 1977. Decidiram que ela voltaria a trabalhar depois, e esse depois foi se adiando até que veio meu meu irmão, nós mudamos duas vezes de cidade devido às mudanças de trabalho do meu pai - de Sorocaba para Salto em novembro de 1982, de volta a Sorocaba em julho de 1988 - e ela se envolveu em uma série de trabalhos comunitários. Ela vinha dando aulas particulares e pretendia se estabelecer como professora, mas o destino fez outra escolha.

Cresci ouvindo que era parecido com a minha mãe, e, de fato, ela nunca se eximiu da “culpa” pelo nariz de tomada e pela boca grossa, totalmente característica dos Rodrigues de Salto, mistura da minha avó filha de italianos com meu avô filho do já citado Nhô João Tristão, caboclo com ascendência mestiça que era famoso, dizem, por não conseguir ficar com as botas nem dentro da igreja. Outra coisa que herdei, aliás: já cheguei a passear por ambientes de trabalho só de meias atrás de água e café enquanto os sapatos/tênis repousavam embaixo da cadeira.
Mas a impressão é que o tempo maior de convivência com meu pai foi me deixando mais parecido com ele, de alguma forma. Se a semelhança física no rosto se limitava aos olhos e às orelhas de abano (para ambos mais destacadas durante a infância), altura, peso e trejeitos não deixavam dúvida: “Você é filho do Serjão, né?”, ouço até hoje.
Curiosamente, na infância, meu irmão era mais associado ao lado do meu pai, mais especificamente aos Cesarotti. Na verdade, como ele era na infância a única pessoa magra da família, acabava mais associado ao vô Máximo e ao tio Atílio - irmão do meu avô e colega de Estrada de Ferro Sorocabana. Até hoje meu irmão e eu não somos parecidos e, se você perguntar a qualquer pessoa que conviveu com meu pai em sua última década de vida quem se parece mais com ele, nove de dez dirão que sou eu. Quando me olho no espelho logo depois de acordar, às vezes até me assusto com a semelhança na região dos olhos - especialmente nas olheiras cada vez mais profundas. A boca e o nariz da minha mãe, contudo, permanecem.
Permanecem ainda as memórias. As fotos, a voz, os cartões de aniversário, os documentos, o caderno de receitas.
E permanece, acima de tudo, a certeza de que de alguma forma, eles ainda vivem em nós.
Muito bom a gente parar, olhar pra trás e conseguir traçar essas influências. Cada um vive o seu próprio This Is Us particular
Que história massa