Sobre fitas cassetes, vozes, fetiches e memórias
Este texto está um pouco mais longo do que o normal, mas vocês vão entender o motivo. Não desistam de mim.
Dia desses saiu no Escolhão a notícia de que as vezes de fitas cassete aumentaram fortemente neste ano, puxadas pelo lançamento do último da Taylor Swift, que eu não ouvi mas dizem que é muito bom, como dizia o outro lá que foi comer capim pela raiz recentemente (“dizem” no caso é a Aletheia, minha esposa e minha referência pra tentar entender a música pop atual, e também fã da moça).
Embora já tenha passado dos 40, sou um cara que tem certos problemas com nostalgia, e definitivamente não sou daqueles que pensam que tudo era melhor quando era jovem. (Meu corpo era, ou pelo menos tinha um metabolismo mais acelerado para que os exercícios da academia fizessem efeito, mas enfim, divago.) E, assim, não vem com essa: não era melhor ouvir música na fita cassete, nem a pau.
E longe de mim ser um hater do formato. Já contei em outros textos de outras plataformas que, na minha infância, eu era uma criança muito desastrada e meu pai, um cara muito cuidadoso com a sua vitrola. Tanto que por um bom tempo eu tive poucos discos considerados efetivamente meus (basicamente o “Rádio Pirata” do RPM, ganho no Natal de 1986, aos 8 anos) e, sempre que queria escutar alguma coisa, tinha que pedir a meus pais para colocar na vitrola. Até tentei algumas vezes, mas tinha um medo genuíno de estragar a agulha e/ou riscar o disco. E, claro, toda vez que tentava escondido fazia merda e achava que tinha riscado o disco e/ou estragado a agulha.
De formas que, no meu aniversário de 10 anos, meus pais me deram um presentaço: um aparelho de som com rádio e toca-fitas. Era um Phillips Sound Machine, vermelho, leve, fácil de transportar e tinha quatro faixas de rádio: AM, FM, SW1 e SW2 - sim, as ondas curtas que poderiam me trazer a BBC e outras rádios estrangeiras, mas acho que nunca tentei sintonizar nada ali, a antena não era grandes coisas. Ouvi, porém, muito jogo no AM direto de São Paulo, com José Silvério & cia. no tempo em que a Pan ainda era uma rádio decente (meio elitista sempre foi, mas pelo menos decente) ou então com o Fiori Gigliotti, já mais perto de seu crepúsculo, pela Bandeirantes

.
E se o aparelho era o que hoje chamamos de plataforma, as mídias seriam as fitas, e elas não ficaram de fora. Junto com o aparelho, como complemento do presente, vieram quatro: “Dois” e “Que País é Este”, do Legião; “Go Back”, dos Titãs, “Bora Bora”, do Paralamas. Por um bom tempo foram as últimas, até que eu começasse efetivamente a me interessar mais pelas bandas e a definir uma espécie de gosto musical próprio. Vieram as primeiras dos Beatles, mais do Legião, “O Tempo Não Para”, do Cazuza, que eu ouvia sempre meio constrangido e com medo que minha mãe entrasse e ouvisse os palavrões, especialmente em “Só as Mães São Felizes”. Não havia um Natal ou aniversário que eu não ganhasse uma fita.
Uma canção, uma lista de top 5...
Na verdade, as fitas já tinham um lugar especial no nosso imaginário familiar antes disso, porque me lembro de grandes sessões de gravação que meu pai fazia, fone de ouvido na cabeça, com o cuidado de um Rob Fleming 20 anos antes de o Nick Hornby pensar em Alta Fidelidade, para que ouvíssemos música no carro durante as constantes viagens de fim de semana entre Salto e Sorocaba.
E, ainda antes disso, havia as brincadeiras de gravar as crianças falando bobagens, que serviam como recordação. Certa vez, no feriado da Proclamação da República de 1984, levamos umas 14 horas para subir a Serra do Mar, vindos de Mongaguá, e quando chegamos a casa estava depenada. Mais do que a perda do aparelho de som, entre outros eletrônicos leves, meus pais se chatearam mesmo foi porque a fita com minhas falas aos 2 ou 3 anos tinha ido embora dentro do deck do aparelho.
Enfim, ao longo do tempo também comecei a fazer minhas próprias gravações dos discos que tínhamos em casa e de alguns emprestados por amigos, sempre com suporte de meus pais. E, claro, do que tocava no rádio, as clássicas gravações repletas de vinhetas, sempre faltando um pedaço da introdução. (Eu também gravei fitas para crushes, claro. Admito: montar playlists é mais fácil.)
Os CDs chegaram em casa, que me lembro, em 1995, quando meu pai comprou no Mappin um aparelho da CCE, cuja péssima fama certamente está na memória dos jovens de outrora como eu - havia várias piadas com a sigla, como “Começou Comprando Errado”. Mas era o que estava ao nosso alcance, e serviu bem por muitos anos. E mesmo assim, as fitas continuaram úteis, porque, quando passei no vestibular e fui estudar fora, ganhei meu primeiro walkman, um modelo lindo da Aiwa, e aí os CDs passaram a ganhar suas versões em cassete para me acompanhar nas longas viagens de ônibus entre Sorocaba e Bauru (pelo menos quatro horas e meia, com direito a paradas em até cinco cidades e em um posto de conveniência na Castello).
Em Bauru, morei em república com mais cinco caras, e tínhamos 3 ou 4 aparelhos que dividíamos entre nós, sendo apenas um com CD, e cheguei a levar o toca-discos para lá quando meu pai ganhou um mais moderno - confesso que nem lembrava disso, mas alguém me lembrou disso ao perguntar no nosso grupo de zap.
Eu ouvi tanto essas fitas que, em alguns casos, elas ditam a memória das músicas. Uma delas tinha a gravação da coletânea vermelha dos Beatles, 1962-1966, e acabou saindo com dois pulos, em “In My Life” e “Please Please Me”, e até hoje às vezes eu me pego cantando essas músicas com aqueles pulos.
Mas o tempo passou. A partir de 1996, não comprei mais fitas, apenas CDs. E em 2000, logo que me mudei para São Paulo, fui a uma das galerias ali na Paulista e comprei enfim meu primeiro discman, também da Aiwa, com direito a rádio FM, fiel companheiro por pelo menos uns 5 anos, até o primeiro aparelhinho de MP3. E as fitas definitivamente viraram memória coberta de poeira até que, em algum momento entre 2011 e 2012, quando começou o processo de desapego e arrumação das coisas após a morte do meu pai, ocorrida em 2010, um dia a caixa de fitas cassete veio à tona.
Já havia os MP3, eu mesmo já tinha a maior parte dos mais de 100 GB guardados em HD, mas ainda assim bateu aquela sensação de “vai mesmo jogar fora?”. Lembro que três exemplares me deixaram especialmente mexido:
uma fita especial “As Melhores dos Festivais” que abria com Jair Rodrigues demolindo o teatro com “Disparada” e terminava com Sérgio Sampaio colocando seu bloco na rua;
uma fita que acompanhou a primeira edição da revista General, criada por boa parte da turma da Bizz que eu adorava à época, André Forastieri à frente, e que me apresentou “Disarm” do Smashing Pumpkins e “Anyone Can Play Guitar”, do Radiohead, antes dos clipes aparecerem na MTV (anos atrás eu achei uma foto da fita na internet e criei uma lista no Spotify com as músicas);
o “Dois” do Legião, menos por ser uma das pioneiras do acervo, mais por ter uma versão ao vivo de “Química” que só circulou nos cassetes e não estava nos vinis, num misto de “uau, vamos te dar algo especial” e “precisamos encaixar alguma coisa pra não ficar aquele espaço no fim do lado B”.
Acabei jogando mesmo tudo fora porque nem tinha mais onde ouvir: de todos os aparelhos de som que tinham restado em casa, nenhum mais tocava fitas cassete. O walkman já tinha ido de Lojas Americanas antes mesmo de a gíria existir, e até o discman já não funcionava mais direito. Foi praticamente tudo para o lixo eletrônico. Sem muita pena.
Porque, vamos combinar, as fitas cassetes eram só um quebra-galho, com vários incômodos. A qualidade do som era meia boca, as fitas se estragavam com muito mais facilidade que os discos e CDs, as pilhas do walkman acabavam rápido, era um inferno quando você queria pular música, os fones do walkman era ainda piores que os atuais. Era prático pela mobilidade, mas todo o resto era uma experiência, digamos, questionável.
É por isso que, quando eu li a notícia do Estadão citada lá em cima, e alguém no BlueSky perguntou o que as pessoas achavam, fui seco na resposta: “fetiche da nostalgia pelo mero fetiche”. Aquela coisa: a pessoa compra a fita, ou o tocador de fita, na esperança de trazer de volta toda a alegria da infância; reproduzir não só a música, mas as sensações que a atingiam quando colocava colocava uma caneta pra rebobinar a fita a fim de economizar a pilha que estava acabando.
Não cospe pra cima que cai na testa
Porém já tem algum tempo que uma fita cassete tem me ajudado a reconstruir memórias. No ano passado, faleceu minha tia-avó Jane, e meus primos, depois de venderem a casa, fizeram uma varredura definitiva nas coisas para entregar ao novo proprietário. E um deles achou uma fita com uma palestra feita por minha mãe em um evento religioso.
Minha mãe, como já contei outras vezes, faleceu em 1994 - logo, nem chegou a ver CDs em casa. E se outro dia falei das fotos e cartões, em audiovisual restaram poucas lembranças, porque nós nunca tivemos câmera de vídeo em casa e o hábito de gravações caseiras acabou à medida que as crianças cresceram.
Entre outras atividades religiosas ao longo de 47 anos de vida, minha mãe se identificou mesmo com a Sociedade de São Vicente de Paulo, que se define como um grupo de leigos que tenta realizar ações de caridade de forma mais construtiva e menos assistencialista. Fui muitas vezes com ela fazer visitas a famílias carentes, levando mantimentos e alguma tentativa de conforto espiritual. E, dentro do grupo, ela se tornou uma liderança, atuando em encontros de formação como aquele que acabou registrado, explicando como realizar essas visitas.
Bom, um dos meus primos deu a fita pra gente. Ficamos meu irmão e eu discutindo como encontrar alguém para digitalizar, até que minha cunhada se encarregou da tarefa. E um dia ela manda o link de uma pasta no Google Drive para fazer o download. “Palestra Inês” ou algo assim era o nome do arquivo, autoexplicativo. Baixei. E, sem pensar muito, cliquei com o botão direito, abrir com Audacity.
E foi estranho ouvir novamente aquela voz, 30 anos depois.
Parecia mais aguda do que antes, mas, provavelmente, é o efeito de uma gravação feita com um aparelho caseiro, na boca de uma caixa de som velha alimentada por um microfone ruim. Ou foi a minha memória que me traiu, mesmo. Depois, lembrei que nas palestras (vi muitas; depois que ela se foi, cheguei a fazer algumas) ela empostava um pouco a voz, ao mesmo tempo em que nunca parecia 100% à vontade com o microfone na mão, a voz sai meio embargada, artificial.
A fita não traz minha mãe de volta, mas é o que tem para hoje, afinal, é o que chegou para ajudar a (re) consruir minhas memórias. Há outras fitas com palestras que, espero, devem estar guardadas no acervo dos vicentinos, onde talvez haja ainda outros registros em vídeo. Ainda há também um VHS já digitalizado de um encontro da família do meu bisavô materno, realizado em 1987, com umas 200 pessoas, em que ela aparece. Vamos aos poucos, um de cada vez. Não é fácil lidar com tais emoções, e obrigado à fita cassete pelo registro. (Mas não, eu não vou mais comprar fita cassete nenhuma.)
Além da extrema identificação com muita coisa (do desprezo pelo fetiche às memórias), é o tipo de texto que a gente gosta demais de ler. Realmente, muito inspirador.
Que texto bom.
Quando era pequena, juntava eu, minha irmã e meu pai e gravávamos músicas de Raul no Meu Primeiro Gradiente.
Acho que perdemos todos esses registros. Era tão divertido fazer as gravações.
Fita Cassete, para mim, só é boa ao resgatar essa lembrança. No mais, fico nos vinis mesmo e mídia digital.
Um beijo.