Seis anos sem cantar o Hino Nacional: o que vem depois da Nova República?
O Brasil que eu conhecia acabou seis anos atrás, com o assassinato de Marielle Franco; ainda não sabemos o que ficará no lugar
Nasci em 1978, ainda no governo Geisel, mas já com o general Figueiredo escolhido como o presidente seguinte, ainda que preferisse o cheiro dos cavalos ao do povo. Como boa parte das crianças crescidas nos anos 80, entre minhas primeiras lembranças do que seria o mundo que nos cerca estão a eleição de Tancredo Neves contra Paulo Maluf, a doença e a posterior morte de Tancredo, a posse de Sarney, o Plano Cruzado, a Constituinte, a proclamação da Constituição de 1988, todo um período e um conjunto de ações e decisões que se convencionou chamar de “Nova República”.
(Eu que já era um pouco mais fritado em política, nascido numa casa em que a “Veja” chegou antes de mim, lembro até da convenção do PDS, partido de sustentação da ditadura, em que Maluf superou dois milicos com disfarce de “técnicos”, Aureliano Chaves e Mário Andreazza, para ter o direito de concorrer com Tancredo. O PDS virou PPR, depois PPB e hoje é o PP do Arthur Lira.)
Num rápido resumo, bem superficial, a Nova República:
sobreviveu ao confisco da poupança do Collor;
supostamente se fortaleceu com o impeachment do mesmo Collor;
ganhou tração com o Plano Real e a vitória (de Pirro?) sobre a inflação;
resistiu às crises internacionais e às decisões e teimosias estúpidas que quase mandaram o Real para o vinagre;
sacolejou sem energia durante o apagão do segundo governo FHC;
viu o operário Lula, outrora “comunista”, ser enfim eleito presidente com um discurso de moderação e conciliação que durante a campanha o fez parecer mais candidato do governo do que o próprio candidato do governo, José Serra, que passou a campanha toda falando em “mudança”;
pareceu consolidada quando Lula cumpriu seus dois mandatos e ainda elegeu sua sucessora, a primeira mulher a presidir o Brasil, e ainda por cima uma ex-guerrilheira de esquerda que havia sobrevivido às torturas da ditadura encerrada apenas 25 anos antes, um nada em termos históricos.
Pois é, só “pareceu”.
A Nova República acabou seis anos atrás, em 14 de março de 2018, com o assasinato da vereadora Marielle Franco, a tiros, numa noite quente do fim do verão carioca.
Já havia sinais de que as coisas não iam bem, é verdade. A forma como as chamadas “jornadas de junho” deixaram de ser uma tentativa justa de revolucionar o transporte público, a partir da adoção do passe livre - hoje adotado em várias cidades do país - para se tornar um protesto difuso contra “tudoissoquetaí”, mas calma lá, nem tudo, esses aqui podem continuar, sim, os homens, sim, os brancos, isso, devagar, aí… fechou.
O desonesto pedido de recontagem de votos de Aécio Neves após as eleições de 2014 e o impeachment freestyle imposto a Dilma Rousseff eram sintomas de que a Nova República estava se esvaindo. Nem quero aprofundar muito a discussão sobre qual foi o tipo de golpe imposto à primeira mulher eleita presidenta; registro apenas que tudo começou com a chantagem de um deputado enrascado em denúncias de corrupção mesquinha e alçado a grande gênio da política - comparado em capa de revista ao protagonista de uma série americana que, supostamente gênio, era só um assassino de terceira classe que eventualmente precisava matar com as próprias mãos.
O assassinato de Marielle, a sangue frio, com tiros disparados de um carro em movimento numa cena que um filme de máfia precisaria de dublês para reproduzir com alguma fidelidade, simboliza o fim da Nova República porque, ao mesmo tempo em que atingiu a mulher negra nascida na favela, mãe solteira que depois se identificou homossexual, eliminou uma pessoa pública institucionalizada, uma vereadora eleita que cumpria com rigor e eficiência seu mandato. Se uma vereadora não está a salvo, ainda que fosse uma exceção, quase uma agressão à falsa meritocracia da democracia liberal burguesa, ninguém está.
(Ninguém estava, mesmo. Nem duas semanas depois, dois ônibus que acompanhavam Lula numa caravana de palestras e eventos pelo Sul do país foram atingidos por tiros no interior do Paraná. Ninguém se feriu. Ninguém foi responsabilizado. Passaram-se os dias, um general de pijama em cadeira de rodas ameaçou abertamente o STF sobre um julgamento e o ex-presidente, aquele ex-operário eleito com discurso conciliador, logo seria preso num processo viciado, posteriormente anulado.)
Na noite de 14 de março de 2018 eu estava dando aula, como fazia desde 2014, nos cursos de Comunicação do Ceunsp (Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio), em Salto, aqui no interior paulista. A mesma cidade, como contei aqui, em que minha mãe nasceu e que morei com minha família. O mesmo prédio, antes ocupado por uma tecelagem, em que haviam trabalhado meus avós, meus tios e também minha mãe, a carteira de trabalho dela aqui guardada não mente.
Naquele dia, se meus registros estão certos, dei uma aula de História da Publicidade para alunos calouros daquele curso, contando naquele dia um pouco sobre o Brasil das décadas de 1920 e 1930, do rádio recém institucionalizado e de como aquela revolução de tecnologia na comunicação começava a mudar o país inclusive na política - entre outras coisas, ajudando o golpe que colocou Getúlio Vargas no poder em 1930, encerrando com o período da chamada República Velha. Dei ainda a sequência de uma aula sobre técnicas e teorias básicas do Jornalismo, também para calouros - lide, título, aquela coisa toda.
Soube da morte de Marielle pelo Twitter, na volta para casa após as aulas, matando o tempo na van que trazia os professores da volta para Sorocaba. Não conhecia Marielle a fundo; tinha apenas ouvido falar que fazia um bom trabalho, na medida do possível diante da realidade carioca, que tinha atuado no gabinete do Freixo, enfim, o básico. Era o suficiente: do pouco que sabia, Marielle era alguém que acreditava nas mesmas coisas que eu, que partilhava da minha visão de mundo. À parte todas as condições geográficas, materiais e intelectuais que nos separavam, era alguém que eu poderia enxergar como igual.
No dia seguinte, 15 de março, não dei aula. Era dia de colação de grau das turmas que haviam concluído os cursos de comunicação no ano anterior, e para mim tinha um sabor especial, porque havia sido escolhido como paraninfo da turma de Jornalismo, a turma que havia entrado na faculdade junto comigo, em 2014, eles como estudantes e eu como jornalista que, quase de uma hora para outra, virava professor. A minha querida e até hoje saudosa “5ª B”, como eu me referia quando reclamava das conversas paralelas em classe.
E logo no início da cerimônia já me veio a sensação de ruptura, de que algo estava errado: quando o Hino Nacional começou a tocar, eu só conseguia chorar. Lembro disso como se fosse hoje, seis anos depois: não consegui cantar uma mísera palavra, só engasgava e deixava as lágrimas caírem.
Ainda tive a oportunidade de ler o discurso do paraninfo, escrito e aprovado previamente pela coordenação (vi aqui nos meus arquivos, salvo no HD externo) com data de 12 de março). Puxo aqui só um parágrafo:
Vivemos tempos de crise. Turbulências na economia, dificuldades no mercado de trabalho, falta de credibilidade na política e nos meios de comunicação. São tempos estranhos, em que pessoas desvalorizam o conhecimento científico e se apegam a crendices como “terra plana” e outras bobagens. É a era do anti-intelectualismo: para que estudar, para que pagar uma universidade, se eu posso aprender tudo em meia dúzia de vídeos no YouTube?
Parece premonitório, mas, como já dizia ali em cima, eram sinais, “fortes sinais”, como diria o outro. O Brasil que eu vi ser reconstruído ao longo de 30 anos, a duras penas, com freios e contrapesos, com pequenos avanços alternados a recuos estratégicos, já não existia mais. Acabou definitivamente, de morte matada, com os tiros que atingiram Marielle e Anderson Gomes no centro do Rio em 14 de março de 2018. O que veio depois, ao longo dos quatro anos seguintes do governo Bolsonaro, foi escombro, saque e baderna por cima dos destroços originais. E eu nunca mais, nem nas colações de grau seguintes, nem em qualquer outro tipo de evento, consegui cantar o Hino Nacional.
Não sei para onde vamos a partir daqui e o que será do Brasil após a derrocada da Nova República. Adoraria encerrar o texto com uma mensagem otimista, destacando melhorias pontuais vindas com Lula e sua frente ampla, mas, por mais que o governo tenha acertos importantes, derrapa em alguns pontos e, pior, passa a maior parte do tempo como aquele cara que equilibra pratos em pedaços de madeira enquanto pedala em cima de um monociclo.
Ver que a chamada grande imprensa, mesmo que cada vez menor em alcance e relevância, continua disposta a repetir as mesmas ações que nos enfiaram nesse buraco, só aumenta meu desânimo.
Numa sociedade cada vez mais individualista, debates relevantes como o aquecimento global, a fome e a desigualdade social ficam em último plano diante de espertalhões bancando os malucos que querem ir a Marte.
A própria crença nas mesmas coisas de antes, aquelas que de alguma forma me uniam a Marielle, me parece muito mais esperança, idealismo e até uma dose de pensamento mágico do que algo efetivamente viável de se realizar. Como manter o otimismo diante de situações como o imigrante brasileiro que se elege deputado em Portugal por um partido de extrema direita, com inclinação fascista e pauta anti-imigração?
A sensação é que somos todos passageiros de um trem desgovernado, cujo maquinista avistou ao fundo um precipício e resolveu acelerar para acabar logo com o sofrimento. Eu quero descer e procurar outro trajeto, mas o quanto mais vou me machucar se tentar pular? Cartas à Redação.
"A Nova República acabou seis anos atrás, em 14 de março de 2018, com o assassinato da vereadora Marielle Franco, a tiros, numa noite quente do fim do verão carioca.".
É isso.